sexta-feira, 2 de março de 2018

Querida cidade:


Querida cidade:

As saudadinhas que tenho do teu feitiço de luz e cor que não nos deixa a epiderme!

Quando, ao fim de muitos anos a bater com a cabeça na parede, decidi mudar de vida e instalar-me na minha pequena aldeia, não pensei nas consequências do meu acto (quase, quase grito de liberdade!). 

Estou na minha vidinha de aldeia e todos os dias me falta um pequeno pedaço de mercearia, loja do chinês, banca de fruta, porta do metro, barulho do eléctrico, velocidade automóvel, línguas diferentes, gente de máquina em punho, taberna a cheirar a vinho até ao outro lado da rua, comentários sobre o preço obsceno de casas que estão a cair de podre, carros a circular como se estivessem em auto-estrada em ruas de sentido único, restaurantes a abrir e a fechar portas a cada mês que começa, filas de trânsito com gente a cantar aos gritos pelas colunas do carro para nos lembrar que o dia de trabalho já acabou, autocarros com travões que se ouvem até ao bairro seguinte, taxistas respingões sobre o estado do asfalto, chuva torrencial nos meses de outono e  inverno (de encher até transbordar) e ondas de calor nos dias quentes de Agosto, nevoeiro sobre o rio (de não se conseguir ver nada quando se está por perto), os pintas das discussões da bola sentados na mesa do café, o euromilhões jogado onde calha (porque não é só o café do Júlio que tem um contrato com a Santa Casa), o tempo acelerado para nos deslocarmos a qualquer lado porque o trânsito é real, a vida de bairro dos residentes, que espreitamos durante uma parte do dia e que nos sabe tão bem, o mau estacionamento, uma visita rápida a um museu ao almoço para não se perder a exposição, o maravilhoso mundo dos saldos de inverno, das compras de natal e das feiras de época nos parques públicos, um instante num miradouro a pensar na vida, a surpresa de um lugar escondido com uma vista sobre o rio (que não contamos a ninguém, não vá o Diabo tecê-las), o espírito de desenrasque num carro avariado no meio da estrada com o vale tudo de trânsito instalado, a malta dos símbolos futebolísticos a circular em dias de jogos da bola, o cheiro a sardinha assada nos arraiais de verão, a fachada da Assembleia da República em dias de manifestações cheia de baías de segurança a impedir que os carros circulem, os agentes da autoridade com ar simpático a tentar safar turistas da nossa sinalização recambolesca, os cartazes eleitorais cheios de recados pintados à socapa, a cidade a parar junto ao Palácio de Belém com uma PorraDeUmaCimeiraDeUmaMerdaQualquer, os Jerónimos com filas de gente a transbordar que quando de lá sair não faz a menor ideia do que viu lá dentro, as sandes de panados e ovos mexidos nas montas dos cafés duvidosos que resistem, a descoberta de um sítio novo onde se vai até se perceber que está na moda, ler o jornal num café onde os senhores (que atendem para lá de um batatal de gente todos os dias) sabem o que queremos mesmo sem termos pedido, as refeições ao almoço mais caras do que deviam, o amolador de vez em quando com a bicicleta de 1920, a malta a safar-se nas ruas da baixa como pode com um bocadinho da sua arte, as gelatarias maravilhosas que aparecem como cogumelos a partir do mês de Abril, e tudo o resto que faz parte deste mundo.

Quando me cruzo com gente que fugiu porque, como eu, deram um quase quase grito de liberdade, vem sempre à baila o perfume desta cidade sedutora, com tentáculos de polvo que não nos deixam esquecer...

Repara que até tenho saudades de coisas menos agradáveis, mas minha querida cidade berço da minha existência, és de um charme único e que melhora com o tempo, apesar de todo o que de mal te infligem, mas infelizmente só valorizamos à distância...

Até breve!

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