segunda-feira, 27 de agosto de 2007

EPC

Nas palavras de Eduardo Prado Coelho, a nossa homenagem à sua escrita...

Jornal Público
No fio do Horizonte
Terça-feira, 28 de Março de 2006
Chás

Aminha mãe ou a minha avó diziam-me: "Amanhã vamos à Baixa." A Baixa era para mim uma festa: muitas lojas e as compras na Rua do Ouro, na Rua Augusta ou na Rua da Prata. Toda esta procura passava por um lugar onde só vendiam botões e que me deixava verdadeiramente encantado.Mas o momento verdadeiramente alto era o abandono das compras e a decisão de ir tomar chá. Entrávamos então na Ferrari ou na Bénard e pedíamos um chá e muitas vezes uma torrada, ou então bolos. Os bolos vinham num prato para nós podermos escolher - prática que foi eliminada dada a sua natureza manifestamente pouco higiénica. E havia o chá: só havia um e tinha de ser esse a ser pedido. A lista dos chá não existia. Sempre que surgia uma indisposição, ou o cansaço nos invadia, recorríamos ao chá de tília ou ao de camomila. E com isto preenchíamos a lista dos chás. Era simples e eficiente. "Dê-me um chá" e eles, os empregados de mesa, traziam.Hoje temos, por exemplo, as infusões. Caracterizam-se por serem sujeitas na sua produção a um processo mais longo e não terem o seu ponto de partida na Camélia Sinnensis. Noutro dia, lia na Notícias Magazine quais as infusões recomendáveis, numa lista aliciante de plantas ant-edema: "Em infusão (dez minutos num litro de água, em média), sugerem-nos a orelha de rato, o pé de cereja, o hibisco, a rosa silvestre, o tomilho, o rosmaninho e a groselha." É óbvio que aquela da orelha de rato me impressionou profundamente.Hoje ir a uma pastelaria e pedir um chá tornou-se uma operação complexa. Ela passa por aquilo que Fernando Savater, num livro brilhante, analisou exaustivamente: "A coragem de escolher." Adeus a um simples chá preto de Ceilão. Agora somos confrontados com nomes exóticos que mostram a realidade efectiva da mundialização.Temos, em primeiro lugar, o chá verde. Mas não basta ser chá verde. Há aquele que é aromatizado com pétalas de hibisco ou de rosa.Temos depois o Roibos Safari, que pode ser aromatizado com coco, pedaços de chocolate ou de caramelo. O Earl Green, esse é um chá verde aromatizado com óleo de bergamota.O Sakura Imperial é aromatizado com cereja. Não uma honesta cereja, mas uma determinada, a japonesa. Há ainda o Pu-Erh, que tem a característica de ser um chá vermelho. E, no domínio deste arco-íris, temos ainda o chá branco, que dá pelo nome de Pai Mu Tan. Outros preferem o Vanille Sencha.Estamos em pleno desassossego: a minha avó, se fosse viva, optaria pela leitaria de bairro. A ida à Baixa foi substituída pelos centros comerciais. E a serenidade tépida de outros tempos desapareceu. Há lojas de chá em cada esquina (exagero, claro). E a nossa infância envelheceu com as cores dos chás que nos assediam.

Professor universitário

1 comentário:

gmorais disse...

Hoje comprei o Público. Não havia fio do horizonte. Parece que o autor, com ar de visigodo entronado, morreu ontem. Ontem foi também publicada no mesmo jornal a sua última crónica.

Ao que parece uma corte de antigos, novos e aspirantes intelectuais
participaram nas cerimónias fúnebres como convém nestes momentos. A cronista do Público foi detalhando com precisão

“Rodeado de livros e de palavras, de amigos e família. A despedida de
Eduardo Prado Coelho passou pela biblioteca do Palácio Galveias, em
Lisboa, onde o corpo do escritor e crítico esteve sempre acompanhado
pelos livros. Atrás de si a Economia, à direita a Política e as
Ciências Sociais, à esquerda o Direito e a Educação.”

Enfim, foi o possível do momento. Não vale a pena sequer citar o
chorrilho de engrandecimentos à figura em causa. Tenho pena por
ele. Uma pessoa de quem ninguém consegue dizer uma palavra menos
abonatória significa que foi essencialmente prudente e um intelectual, como dizia Zola, nunca é prudente.

Não sei porquê, mas deixa uma certa saudade saber que o fio do horizonte cessou. Ninguém conseguia, ninguém mesmo, nomear e conjugar nomes implausíveis e inconciliáveis como ele nem ninguém, ainda menos, conseguia dizer disparates com aquela leveza de quem leu muito. Infelizmente com ele não morre a sua corte, de quem ele era indiscutivelmente o rei, nem esse jeito pusilânime e inútil de ser intelectual.